Regressar à presença anterior à filosofia: a perplexidade em Ibn ʿArabī - uma reflexão a partir de María Zambrano
Resumen
Platão e Aristóteles situaram a origem da filosofia na experiência de thaumas, o espanto, admiração ou maravilhamento (verbo thaumazein), precisando Aristóteles haver um espanto inicial, comum a todos os humanos. María Zambrano, contudo, considera que, se o “pensamento” tivesse nascido apenas da “admiração”, seria difícil explicar como se plasmou tão rapidamente em “filosofia sistemática” e abstrata, pois essa “admiração” suscitada pela generosidade da “vida” que nos circunda “não permite tão rápido desprendimento das múltiplas maravilhas que a suscitam” e, sendo tão “infinita” e “insaciável” como a própria vida, “não quer decretar a sua própria morte”. Na experiência de Álvaro de Campos não há qualquer pacificação do pasmo ou assombro da consciência pelo conhecimento conceptual e objectivante, pois jamais se dá a violência do distanciamento que María Zambrano vê na origem da filosofia. Pelo contrário, o pensamento, se não deixa de emergir sob o signo da interrogação e da especulação ontológico-metafísica, é sempre conduzido pelo arrebatamento ante a irredutibilidade do “mistério” de “haver ser” que frustra sem apelo esse desejo natural de saber partilhado por todos os humanos, como se consagra na primeira linha da Metafísica de Aristóteles, obra paradigmática da deriva racional e epistemológica da filosofia ocidental.
É a esta luz que nos interessa explorar a relevância da experiência da perplexidade em Ibn ʿArabī, como culminação na consciência do dinamismo automanifestativo da Realidade plena. A perplexidade em Ibn ʿArabī aponta para um regresso ao que María Zambrano considera o arrebatamento extático da experiência antes da violenta separação originadora da filosofia ou dessa filosofia meramente interrogativa e conceptual que define como “um êxtase fracassado por um dilaceramento”. Ibn ʿArabī vai assim no sentido oposto ao da racionalidade ocidental globalmente dominante: não do espanto ou êxtase para a filosofia enquanto teoria racional do mundo, mas desta para o maravilhamento extático da consciência. Na verdade, a ḥayra pode ser vista como afim a esse espanto, admiração, pasmo ou maravilhamento original de uma consciência ainda não cindida da imediata Presença metamórfica dos fenómenos en uma Vida em constante metamorfose. Nesse sentido a ḥayra é afim à experiência poética do mundo, se a virmos não apenas como a que dele têm os poetas humanos, mas antes como a do mundo ser fundamentalmente poesia divina. Ao limite, a fenomenologia da ḥayra pode ser a do vórtice ou vertigem de um Deus que se autodeslumbra a cada instante ao manifestar-se e aparecer de si a si mesmo em modos e formas sempre novos, nessa divina e autopoética imprevisibilidade do Real irredutível a qualquer sistematização religiosa ou teológico-filosófica.