Daimon. Revista Internacional de Filosofía, nº 94 (2025), pp. 194-197

ISSN: 1130-0507 (papel) y 1989-4651 (electrónico)

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MATÉ, G. (2022): Quando o Corpo diz Não. Porto: Ideias de Ler, pp. 312.

Quando fala-se do corpo humano, geralmente tende-se a cair em dois extremos, ou melhor, em dois tipos de reducionismo: o monismo e o dualismo. Enquanto o primeiro incide exclusivamente sobre esta componente da pessoa humana, mostrando, deste modo, que a pessoa humana não é nada mais do que o seu corpo, abdicando ou negligenciando, assim, a sua outra componente, a mente, o segundo, por sua vez, dissocia na pessoa humana o seu corpo da sua mente, conferindo, assim, por outro lado, uma exclusividade a esta componente em detrimento da outra, chegando, em alguns casos, a ofuscar a primeira.

Do mesmo modo, quando se fala da afetividade, também se tende a cair em alguns reducionismos. O primeiro, próprio do psicologismo, dá uma primazia a esta componente da pessoa humana, negligenciando, assim, as suas outras componentes, que são igualmente indispensáveis para que ela se autorrealize; já o segundo, próprio racionalismo, considera sempre a afetividade como uma componente irracional, que condiciona negativamente a autorrealização da pessoa humana.

Nesse sentido, é muito relevante e importante este livro muito legível do renomado médico (physician / Medical Doctor) Gabor Maté, que, dialogando com diversas áreas do científicas, em particular com a filosofia, a biologia, a psicologia, a neurociência, a sociologia, a política, a medicina e a educação, propõe uma visão mais realista ao abordar as distintas componentes da pessoa humana, evitando, assim, cair em qualquer tipo de reducionismo. Para tal ou autor dividiu a sua obra em 19 capítulos.

Assim, no primeiro capítulo, Gabor Maté analisa e relaciona várias entidades da pessoa humana, em particular a mente, o cérebro, a afetividade e o corpo. Do mesmo modo, também as relaciona com a saúde e as enfermidades. Já no segundo, o autor dá um enfoque na afetividade, interpretando os seus vários matizes e estabelecendo uma conexão com o ambiente externo, a história pessoal, o corpo e as várias doenças. Aqui também demonstra a importância da autenticidade e da interpretação e comunicação da afetividade.

Sucessivamente, no terceiro capítulo, Maté não só continua analisando a afetividade e os seus vários tipos, demostrando, igualmente a sua função, mas também a relaciona com a vontade, a imaginação e a memória, com o corpo, o sistema nervoso e o sistema imunitário. Neste capítulo também aborda a importância da educação afetiva, desde a infância até à fase adulta (bem como a necessidade de educarmos os outros neste âmbito), demostrando, assim, um âmbito ético no que diz respeito à afetividade. Já no quarto, o autor continua dissecando a importância da educação afetiva.

Posteriormente, no quinto capítulo, Maté estabelece uma relação entre a afetividade, os sistemas nervoso, hormonal e imunitário, outras reações fisiológicas internas no organismo e o corpo. Do mesmo modo, também cria uma relação entre a afetividade e os contextos social, económico, familiar e profissional, o corpo e a doença. Aqui também analisa algumas questões éticas, como a relação entre médico e paciente. Já no sexto, o autor continua analisando a relação entre a vida familiar e social, ao longo da história, e as várias enfermidades; aqui também aborda algumas questões éticas.

Seguidamente, no sétimo capítulo, Maté não só distingue e relaciona os dois tipos de ambiente na pessoa humana, como também estabelece uma relação entre alguns atos cognitivos e a neurociência, em particular com o cérebro, e entre a afetividade e a genética. Aqui analisa, também, a progressão das enfermidades, relacionando-as com a idade, o sexo, a posição social, etc.. Já no oitavo, o autor investiga e relaciona o estilo e o estado de vida, os fatores psicológicos e a doença. De igual modo, aqui também examina a doença do ponto de vista geográfico e relacionando-a igualmente com questões económico-político-sociais.

Continuamente, no nono capítulo, Maté estabelece uma relação entre a personalidade e a doença. Já no décimo, o autor continua com a sua análise neurocientífica e sobre algumas questões éticas entre médico e paciente.

Em seguida, no décimo primeiro capítulo, Maté mostra como alguns fenómenos corporais ajudam-nos a interpretar e a conhecer a realidade. Do mesmo modo, estabelece uma relação entre a afetividade e o conhecimento e entre este e a neurociência. Também aborda algumas questões éticas, como por exemplo a farmacologia. Já no décimo segundo, o autor relaciona entre si os atos cognitivos, a afetividade e o desenvolvimento humano.

Posteriormente, no décimo terceiro capítulo, Maté mostra a importância e a função da afetividade e de sermos consciente, de interpretar e de comunicar virtuosamente os vários afetos. Mostra igualmente a diferença entre a afetividade na pessoa humana e nos animais irracionais. Finalmente relaciona a afetividade e a memória. Já no décimo quarto, o autor relaciona a afetividade com os vários tipos de relações interpessoais e as enfermidades, mostrando também o seu âmbito ético.

Consequentemente, no capítulo décimo quinto, Maté foca na importância das relações virtuosas no seio da família. Já no décimo sexto, o autor mostra como o tipo e a qualidade de relações na infância têm um impacto, sucessivamente, no tipo e na qualidade de relações que a pessoa estabelece na fase adulta e, de igual modo, o impacto que acarreta nas gerações vindouras.

Posteriormente, no capítulo décimo sétimo, Maté interpreta a genética humana e de que forma ela é influenciada pelo ambiente externo. Neste capítulo, ele também analisa vários tipos de comportamento que as pessoas adotam, muitas vezes propostos pela sociedade e pela cultura, e que condicionam a sua autorrealização. Já no décimo oitavo, o autor evidencia alguns erros antropológicos que se cometem no estudo da pessoa humana, procurando, do mesmo modo resolvê-los. Evidência também a importância do realismo, a fim da pessoa humana autorrealizar-se.

Finalmente, no capítulo décimo nono, Maté analisa algumas características e comportamentos que a pessoa deve adotar a fim superar as enfermidades, bem como nos devemos comportar com as pessoas enfermas a fim de que eles superem a suas doenças.

Dos vários pontos positivos que se podem destacar nesta obra, que certamente são muitos, gostaria de salientar os seguintes: o primeiro consiste no facto de, metodologicamente falando, Gabor Maté ter estabelecido um diálogo interdisciplinar entre várias áreas científicas. Neste sentido, penso que esta obra se destaca por aportar várias e novas considerações a várias dessas áreas, podendo, portanto, ser do interesse de vários cientistas. Do mesmo modo, salienta-se também positivamente na obra que o autor tenha recorrido não só ao pensamento de outros autores, das mais variadas áreas do saber, mas também tenha usado histórias de várias pessoas, experimentos, e dados estatísticos para fundamentar e corroborar as suas ideais. Penso que a obra também prima por demonstrar os limites e os erros que se podem verificar em alguns autores e áreas do saber.

No que diz respeito ao conteúdo propriamente dito da obra, gostaria de destacar o facto de Maté, a longo de toda ela, não desconsiderar ou dissociar na pessoa humana duas componentes que fazem parte da sua essência, a mente e o corpo, invalidando, deste modo, qualquer tipo de monismo ou dualismo. Neste sentido, salienta-se na obra como o autor mostra que a mente e o corpo, apesar de serem entidades essencialmente diferentes, podem relacionar-se entre si. Este raciocínio, o autor também estabelece entre o intelecto, a vontade e a afetividade, mostrado de que modo estas componentes, apesar de serem essencialmente distintas, podem relacionar-se entre si, a fim de garantirem a autorrealização na pessoa humana.

Já no que diz respeito à afetividade, mais concretamente, considero importante que Maté não só tenha mostrado a subjetividade e a objetividade que se verifica nesta componente, mas também tenha mostrado a sua relevância na vida de qualquer pessoa humana. De facto, como o autor mostra, a afetividade ajuda-nos a conhecer de melhor forma a realidade e, deste modo, como temos de nos comportar diante dessa mesma realidade. Neste sentido, ao falar-se de afetividade, considero de igual modo importante que o autor tenha mostrado que devemos não só ser conscientes de todos os nossos afetos, mas também interpretá-los, integrá-los e comunicá-los.

Nesta linha, um outro ponto que considero importante destacar nesta obra é o facto de Maté mostrar pertinentemente como o intelecto, a vontade, a afetividade, o corpo, a genética e os sistemas nervoso, hormonal e imunitário se relacionam entre si, mostrando, neste sentido, não só a unidade da pessoa humana, mas também que o ‘todo’, no que diz respeito à pessoa humana, é maior do que a soma das suas ‘partes’.

Com relação ao corpo, mais concretamente, considero excecional que Maté tenha mostrado que esta componente, inclusive quando estamos enfermos, pode-nos ajudar a objetivar melhor a realidade na qual estamos inseridos e, neste sentido, como devemos comportar-nos para garantir da melhor forma a nossa autorrealização.

Simultaneamente, gostaria de mencionar um outro aspeto que se evidencia, pela positiva, na obra: a relação que o autor estabelece entre a família, as relações interpessoais, a sociedade e a cultura, e de que forma condicionam a autorrealização da pessoa humana, e como também, muitas vezes, estão na base de muitas enfermidades. Neste sentido, é também importante mencionar a distinção e a relação que o autor estabelece entre o ambiente interno e o ambiente externo, e de que modo o ambiente externo, muitas vezes, está na base de muitas enfermidades.

Destaca-se de igual modo nesta obra o facto de Maté mostrar a importância do realismo, da construção de uma boa personalidade e da autenticidade a fim de podemo-nos autorrealizar.

Um outo ponto positivo da obra, que gostaria aqui de mencionar, verifica-se quando o autor identifica, objeta e contra-argumenta algumas questões ética, muitas vezes desconsideradas pelas sociedades e culturas e que, de igual modo, condicionam a nossa autorrealização, em particular, no que diz respeito às relações interpessoais, nomeadamente entre os pais e os filhos, os empregadores e os trabalhadores, entre os membros de uma sociedade e entre os médicos e os seus pacientes.

Tendo em consideração os pontos anteriores, considero de igual modo fundamental que Maté tenha defendido que o mau desenvolvimento da pessoa humana, durantes as várias fases da sua vida, condiciona negativamente a posteriori que as gerações futuras possam desenvolver-se de um bom modo e, deste modo, autorrealizarem-se, e assim sucessivamente.

Destaco também a importância que o autor atribui à necessidade de viver-se uma vida equilibrada, da autoaceitação, de cuidarmo-nos de nós mesmos, da doação e do termos de ajudar os outros a autorrealizarem-se, a fim de construir-se, assim, uma sociedade melhor.

Num período onde verifica-se muitas vezes uma má conceção da pessoa humana, condicionando, deste modo, negativamente a nossa autorrealização, penso que este livro de Gabor Maté, que apresenta uma visão bastante realista da pessoa humana, desmistifica muitos desses equívocos, identificando não apenas as suas causas, mas também as suas consequências. Se mantivermos em mente essas suas ideias, penso que muitos dos males que pairam na sociedade hodierna podem ser resolvidos, que não só nos impedem de desenvolvermo-nos como pessoas, como também de criar uma melhor sociedade para acolher as gerações vindouras, a fim de que elas, por sua vez, também se possam autorrealizar da melhor forma e assim sucessivamente.

Eugénio Lopes

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