Daimon. Revista Internacional de Filosofía, nº 84, 2021

ISSN: 1130-0507 (papel) y 1989-4651 (electrónico)

Licencia Creative Commons Reconocimiento-NoComercial-SinObraDerivada 3.0 España (texto legal). Se pueden copiar, usar, difundir, transmitir y exponer públicamente, siempre que: i) se cite la autoría y la fuente original de su publicación (revista, editorial y URL de la obra); ii) no se usen para fines comerciales; iii) se mencione la existencia y especificaciones de esta licencia de uso.

 

BRANDOM, Robert M. (2019). A Spirit of Trust. A Reading of Hegel’s Phenomenology. Cambridge. Massachussets: The Belnap Press of Harvard University Press, 768 pp.

 

A interpretação de Brandom sobre a Fenomenologia do Espírito de Hegel, era há muito tempo esperada, pois ele trabalhou durante muitos anos nessa pesquisa. Trata-se de uma contribuição orientadora para a filosofia contemporânea por um dos seus representantes mais conhecidos e influentes.

Nessa obra, Brandom apresenta uma nova reconstrução da aventura idealista da razão, elaborando o comentário e a interpretação semântico-pragmática da Fenomenologia do Espírito de Hegel. Ele combina a tradição analítica, continental e histórico-hermenêutica, ao mesmo tempo em que ele mostra como as formas do pensamento dominantes na filosofia contemporânea são desafiadas por Hegel.

A Spirit of Trust trata da profunda transformação na história humana que caracteriza a chegada da modernidade. Na sua Crítica da Razão Pura, Kant faz a distinção entre as coisas como elas são em si mesmas e como elas nos aparecem. Hegel discute a distinção de Kant, explicitando o que separa o mundo moderno do mundo antigo. No mundo antigo, as declarações normativas — juízos sobre o que deveria ser — eram tomadas como fatos objetivos. Esses juízos são frequentemente vistos como um dom de Deus. No mundo moderno, esses juízos são entendidos como juízos estabelecidos pelos sujeitos. Hegel tem uma visão que combina ambas as abordagens, que Brandom chama de “idealismo objetivo”: Existe uma realidade objetiva, mas não podemos dar-lhe sentido, a menos que primeiro façamos sentido à forma como pensamos sobre ela. Em certo sentido, o mundo é composto por pensamentos que compõem a matéria, o material da mente. Há em ambos os polos, do lado do mundo e do lado da mente (mind: consciência) pensamentos que estruturam esses lados e que compõem o “espírito” de acordo com a leitura de Brandom sobre Hegel.

Na opinião de Hegel, só nos tornamos sujeitos atuantes quando somos conhecidos e tomados como tal por outros sujeitos atuantes. Isso significa que o estatuto normativo de tais conceitos como obrigação, responsabilidade e autoridade é estabelecido por práticas sociais do reconhecimento mútuo. A modernidade é a era da dominação (mastery): a dominação do sujeito autônomo. Isso leva a uma concepção deficiente das normas, que está associada à alienação. A autonomia moral da autolegislação contém o problema de que a compulsão legal e a intelecção livre se contradizem. As normas apenas dadas a si mesmo perdem facilmente sua força vinculativa. Brandom argumenta que se nosso comportamento autoconfiante e reconhecido assume a forma do perdão, da generosidade e da confiança descritas por Hegel na transição da moralidade para o espírito absoluto da religião, podemos superar a época problemática da modernidade caracterizada pela alienação e entrar numa nova era, a era da pós-modernidade, que para ele é caracterizada por uma ética do mútuo perdão (forgive) e confiança (trust) e, portanto, da reconciliação (reconciliation).

Brandom é da opinião de que ainda hoje podemos aprender com Hegel. Na sua interpretação sistemática da Fenomenologia do Espírito, ele estabelece um diálogo fecundo com a metafísica, a ontologia social, a teoria atual da ação e a filosofia da linguagem. Brandom mostra, entre outras coisas, como Hegel, muito antes de Wittgenstein, não apenas via claramente o problema fundamental de seguir uma regra, mas também propunha uma solução baseada na natureza social das normas. Assim, a visão passa da consciência moral subjetiva para normas, costumes, práticas e crenças comuns. A prática normativa é social, uma mútua relação ética da obrigação que é assumida pelos sujeitos.

Os conceitos-chave da interpretação de Brandom da Fenomenologia do Espírito (FE) são os seguintes: Negação e verdade; Conceitos empíricos e especulativos; Experiência; Luta e reconhecimento; Formas do idealismo; A vida ética pré-moderna e a alienação moderna; Uma ética pós-moderna do perdão, da confiança e da reconciliação.

O livro Um espírito de confiança é composto de três partes: Parte 1 (compreende 7 capítulos da p. 35-234) - Semântica e Epistemologia: Conhecer e representar o mundo objetivo. Nesta parte Brandom comenta os três primeiros capítulos da FE: Consciência (Certeza Sensível, Percepção, Força e Entendimento). Trata-se de uma leitura semântica do processo do conhecimento, ou seja, de uma epistemologia que usa a estratégia da semântica descendente.

Parte 2 (compreende o capítulo 8 a 12, p. 235-468) – Pragmática normativa: Reconhecimento e Metafísica expressiva da agência. Aqui Brandom faz a leitura do capítulo 4 da FE: Autoconsciência (a verdade da certeza de si mesmo), comentando a clássica figura da luta entre o “senhor e o servo” como a interdependência (autoridade e responsabilidade recíprocas) da atitude de reconhecimento e atribuição de estatutos normativos. O autor descreve a estrutura da autonomia e do reconhecimento das atitudes entre os agentes. Brandom interpreta o capítulo sobre a Razão como um novo modelo de ação, não mais como um evento mental ou volitivo que simplesmente acontece, mas como um processo a ser produzido.

Parte 3 (compreende o capítulo 13 a 16, p.269-635) – Rememorando as eras do espírito: da ironia à confiança. Esta parte comenta o capítulo VI da FE: o espírito. Para Brandom a história das estruturas normativas do espírito compreende a eticidade imediata, a emergência da subjetividade, a alienação e a cultura. O ponto culminante da FE, na leitura de Brandom, é a estrutura de reconhecimento rememorativo da confissão e do perdão através da “confiança” (Vertrauen). A última lição do livro de Hegel é a seguinte: “Compreendermo-nos enquanto estrutura pós-moderna da normatividade, comunidade, e autoconsciência individual que é articulada por práticas de reconhecimento tem a forma da confiança. Nesta estrutura, reconhecimento mútuo tem a forma diacrônica de atitudes práticas de confissão e perdão. São práticas sociais de reconhecimento que instituem normas, assumindo a forma histórica magnânima de rememoração” (Id. p. 30-31). A estrutura normativa prática reconhecível da rememoração expressiva dá-se pelo perdão, confissão e confiança. Isto realiza a nova forma cognitiva e teórica da autoconsciência, uma nova forma prática magnânima de agência de autoconsciência. Na conclusão (p. 636 – 758), o autor reafirma sua leitura da FE: a articulação do reconhecimento e a rememoração como o caminho para a era da confiança.

O livro faz uma leitura semântico-pragmática da FE de Hegel. O tópico focal é o conteúdo e o uso dos conceitos, isto é, “as relações entre significado e uso, conteúdo conceitual e aplicação de conceitos (os tópicos, respectivamente, da semântica e da pragmática), entre normatividade e modalidade” (p. 4). A estratégia da semântica descendente é expressar o uso e o conteúdo das práticas empíricas e conceituais que Hegel chama de “conceitos determinados”. Os conceitos categoriais tornam explícito o que está implícito no uso de qualquer conceito aplicado no juízo e nas ações (ver p. 5). A estratégia da semântica descendente não é a metodologia de Hegel, mas a de Brandom. Os metaconceitos ou metacategorias (consciência, autoconsciência, razão etc.) têm a função de tornar explícito o que é implícito no uso e no conteúdo empírico ordinário e nos conceitos práticos. Esse é o método semântico descendente, como um olhar através de binóculo e não de um monóculo, ou seja, isso articula nossa autoconsciência semântica e pragmática (ver p. 8).

O discurso com dimensão social constitui a normatividade e o reconhecimento. A atividade discursiva é a aplicação de conceitos os quais vinculam compromissos e responsabilidades práticas. A teoria pragmática normativa da atividade discursiva é a estratégia pragmática de compreender a semântica em termos pragmáticos (ver p. 10). Ou seja, Hegel constrói a dimensão social da normatividade enquanto reconhecimento, e a dimensão histórica do conteúdo conceitual em termos de racionalidade rememorativa (ver p. 11). Hegel explica as normas discursivas como produtos de práticas sociais, ou seja, a “Bildung”, a cultura é a nossa segunda natureza, construída em nossas interações sociais com os outros (ver p. 12).

A dimensão histórica do discurso expressa-se na racionalidade rememorativa, isto é, rememorar a ideia de normas implícitas em práticas sociais (costumes, usos, instituições). A substância, para Hegel, é a síntese do reconhecimento mútuo. Hegel usa três metaconceitos para explicitar esse reconhecimento substancial: O “Universal” (comunidades) se desenvolve a partir de relações de reconhecimento entre seres “Particulares” que se tornam uma autoconsciência normativa “Subjetiva”, adotando atitudes práticas de reconhecimento através do outro (ver p. 14).

A rememoração é a base da expressão, isto é, “a relação entre o que é implícito e o que é a expressão explícita daquilo” (Id. p. 18). Hegel compreende as fases da experiência prática e cognitiva como a emergência da explicitação rememorativa do que estava implícito. No lado cognitivo, o que está implícito é o mundo objetivo em si, no lado prático o que está implícito é a intenção do agente em si. Hegel explica o que está implícito como um processo se expressando, isto é, “o processo de tornar-se explícito”. A rememoração racional retrospectiva reconstrói o curso da experiência enquanto progride se expressando (ver. p. 18).

Brandom resume sua leitura: Conhecimento, reconhecimento, pragmatismo normativo e a historicidade do Espírito. “Rememoração é a chave para compreender a relação entre a semântica de Hegel (teoria do conteúdo conceitual) e a pragmática normativa (atitudes práticas que são o uso ou a aplicação de conceitos). Este é o pragmatismo como idealismo rememorativo conceitual” (Id. p. 19).

O novo tipo de autoconsciência teórica obtido pela rememoração fenomenológica é para tornar possível uma nova forma de prática normativa. “Quando o reconhecimento assume a forma magnânima de rememoração, é o perdão, a atitude que institui a normatividade como uma confiança totalmente autoconsciente” (Id. p. 19).

Após essa contextualização inicial sobre a obra de Brandom, cabe apontar alguns pontos críticos de sua obra A Spirit of Trust. Brandom tem uma compreensão analiticamente reduzida de importantes conceitos básicos de Hegel. A negação determinada que tem três significados em Hegel – Aufhebung = superação/suprassunção: negar, conservar e elevar – é lida como incompatibilidade material (material incompatibility). Os múltiplos significados da mediação em Hegel (a mediação de algo por outro algo, a mediação de duas determinações por um terceiro mediador, a automediação de algo consigo mesmo, etc.) estão nivelados à capacidade de ligação (a bola pode ser vermelha e redonda) (material consequence). Enquanto em Hegel a negação é mediação e a mediação também é negação, em Brandom a mediação é o outro da negação. Quase não se fala da negação autorrelacionante e dos diferentes significados da imediatidade em Brandom. Com Wittgenstein Brandom diz que a negação é separação e a mediação é conexão. Assim, Brandom também escapa da lógica da negação determinada em Hegel, segundo a qual apenas a cisão negada resulta em reconciliação.

Para Hegel a rememoração tem a função de garantir a verdade das coisas finitas, enquanto Brandom enfatiza o contrário, isto é, a rememoração (recollection) é o reconhecimento dos erros e enganos cometidos na determinação do conceito das coisas no decurso da história, seguindo essa série: rememoração, perdão, reconciliação e confiança. A referência da verdade na rememoração em Hegel é contrastada com sua referência de erro em Brandom. O posterior reconhecimento e perdão de erros na determinação dos conceitos das coisas nos ensina a não condenar e rejeitar o que é contrário à verdade, mas a incluí-la no processo da verdade. As oposições não devem ser criticadas e eliminadas, mas atenuadas. Essa é a única maneira de construir confiança num mundo cheio de oposições e contradições. Esta é precisamente a lição que deve ser tirada do processo normativo da experiência: devemos perdoar os erros morais e os enganos dos outros. Brandom apenas considera os conflitos de interesse como oposições morais, os quais ele apenas pretende mitigar.

Se a rememoração em Hegel tem o significado da suprassunção criticamente pensante da alienação social e política, no livro de Brandom ela tem o significado da contenção da alienação moral através de uma construção comunitária bem-sucedida e orientada por normas. Isso é uma consequência de sua má compreensão da lógica da negação determinada, que implica em dizer não a degradação moral, ao empobrecimento econômico e a violência política. A figura dialética da negação das formas repressivas e dilacerantes da sociedade permaneceu, portanto, estranha a ele. A medida para a vida “boa” ou “não fracassada” das pessoas é avaliada apenas em nível moral. A questão da organização social da produção da riqueza para uma vida materialmente boa nem sequer é posta. Por exemplo, na crise ecológica a ênfase deve ser colocada no domínio da tarefa de reproduzir a vida social no “processo metabólico” em relação de sustentabilidade com a natureza externa.

Para Brandom, espírito significa confiança recíproca e respeito mútuo. Seu ideal é a comunidade de pessoas moralmente boas e generosas. No entanto, continua a ser questionável se esse ideal é mais do que uma compensação fraca da concorrência capitalista.

Em Brandom pode-se observar o fenômeno de que na filosofia contemporânea, a filosofia fundamental sobrevive apenas como ética normativa. O ser humano não é ser humano sem dever ser e obrigação moral. Sua crítica não passa da crítica moral à crítica social. No entanto, a alienação social que é vista como um não “deve ser” não tem o significado do “dever ser” moral, mas de um não querer viver assim. Ou seja, pode-se dizer: esse não querer é uma negação existencial, não uma mera negação moral. Brandom é um normativista ético. Mas a moral não é suficiente para alcançar as condições sociais objetivas.

Enfim, Brandom defende um Hegelianismo analiticamente reduzido e neopragmaticamente inspirado, que por um lado encurta o conceito de espírito de Hegel pelo espírito absoluto da religião, por outro lado transforma o espírito objetivo em uma pragmática normativa (moralidade, eticidade). A razão suprapessoal e anônima em Hegel é reposta no processo intersubjetivo de reconhecimento de seres racionais. Nisso, há também pontos de conexão com Jürgen Habermas e a mais recente Teoria Crítica de Axel Honneth. O ideal da comunidade de pessoas moralmente boas carece, essencialmente, da falta da crítica da economia política do capitalismo com seus antagonismos sociais que apenas podem ser mantidos pela violência política.

 

Christian Iber
(Universidade livre de Berlim; Universidade de Friburgo),

Agemir Bavaresco (PUCRS, Brasil)
Danilo Vaz Costa (UNICAP)